sábado, dezembro 03, 2005

Era uma vez....

...um ateu.

Recusava-se a que a história da sua vida se contasse (principalmente em blogs manhosos), porque para ele, a vida não tinha sentido, tirando talvez aquela noite com uma colega mais velha. Via a existência humana como algo fugaz, aleatório, perturbante, principalmente nos dias mais ventosos. O seu dia-a-dia era feito de desespero, desorientação, e uma sensação de inutilidade, com intervalo para almoço, sendo que à tarde juntava a tudo isso alguma azia. Não falava, não sorria, não sentia, mas tirando isso era uma pessoa encantadora.

Ora acontece que o nosso ateu, cujo nome não vem ao caso, um belo dia sentiu-se mal. Talvez fosse o pêssego em calda que comeu, cujo prazo de validade tinha expirado durante a Revolução Russa; ou o ter visto um filme do João César Monteiro, sem ter consumido nada de tóxico; ou se calhar o ter sido atropelado por uma betoneira. De qualquer modo, não estava nos seus dias.

Hospitalizado, ficou à mercê do Serviço Nacional de Saúde, sem sequer ter tido direito a julgamento. Drogaram-no, amarraram-no, amordaçaram-no, obrigaram-no a decorar a tabuada dos sete. Num estado extremo de fatiga, entrou em coma, o que sendo aborrecido, teve a vantagem de o qualificar como publico-alvo da TVI.


Foi então que lhe surgiu a revelação. Do nada (que é tipo Trás-os-Montes, mas menos frio no Inverno) apareceu-lhe um homem magro, de cabelos e barbas compridos, com um olhar penetrante como nunca antes tinha visto, envergando apenas uma túnica. Emocionado, o ateu exclamou “Não, não tenho trocos!”. O homem sorriu gentilmente, apontou para algo atrás do ateu, que olhou, e deu-lhe uma chapada nas orelhas.

“Então tu não acreditas em Deus?” – perguntou-lhe o homem, com uma daquelas vozes que faz qualquer um sentir-se como um roedor.
“Não…mas acredito que o Benfica ainda pode ganhar o campeonato…”

“Meu filho, isso é um disparate pegado!”
“Eu sei. Gostava de ter fé. Mas não tenho!”
“O Simão vai-se embora em Janeiro! Quem é que vocês vão encontrar até lá?”

“Quero lá saber! Nada faz sentido! Nada tem um propósito” – ateu, desesperado – “tudo isto é inútil e insignificante!”

“Isso é só uma desculpa para não pagares a renda.”
“Ah sim? Então diz-me lá, se existe Deus, e somos todos uma Sua criação, como é que explicas a ‘1ª Companhia’”?


“hã…gostas mais de pêssegos ou de nectarinas?”
“Não mudes de conversa!”

Continuaram em conversa animada, até que o ateu recuperou os sentidos.
“Enfermeira! Enfermeira! Deus existe! Deus está connosco!”

“Ah sim? Então peça-lhe para vestir uma bata e dar um salto às urgências”

“A sério! Deus existe! Deus existe!”
“Está bem. Fico feliz. Agora, se não se importa, tenho de ir ajudar a amputar uma perna”

O Ateu acabou por sair do hospital pelo seu próprio pé, que até parecia outro, com as unhas cortadas. Feliz, radiante, com uma força interior que já não sentia desde uma vez em que tinha ficado 3 dias sem ir à casa de banho. Tinha descoberto o seu lugar no mundo, uma ordem universal, tudo era lindo e cintilante.
Até que se cruzou com o senhorio…

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